terça-feira, março 22, 2011

Conteúdos para o Teste de Português Março/ 2011

Conteúdos:

Textos do Media:

Crónica
Artigo Científico e Técnico
Artigo de Apreciação Crítica

Funcionamento da Língua:

Tipologias Textuais
Actos Ilocutórios
Coordenação/Subordinação(Adverbiais/Adjectivas/Substantivas)
Coerência e Coesão Textuais
Língua/Comunidade Línguística/Variação e Mudança

Produção de Texto

terça-feira, março 08, 2011

Artigo de Apreciação Crítica sobre o filme já visto: O Clube dos Poetas Mortos, por Ana Arruda






O Filme da Minha Vida – “Clube dos Poetas Mortos”, por Ana Arruda

O filme inicia-se no ambiente formal e sombrio da Welton Academy. Meninos entre os 6 e os 17 anos despedem-se dos pais, que os “abandonam” no dito melhor colégio de ensino secundário dos Estados Unidos, como apregoa o director, pois cerca de 90 % dos alunos saem directamente para as melhores universidades.

Neste colégio dá-se primazia aos resultados, descurando-se a forma como se ensinam as crianças e os adolescentes a tornarem-se independentes e capazes de enfrentarem o mundo real. Venera-se a quantidade em desprimor da qualidade (onde é que eu já vi isto? – é um tema bem actual…)

O Clube dos Poetas Mortos ou, como carinhosamente o trato, DPS (Dead Poets Society), é uma obra prima de Peter Weir que tento, sempre que possível, trabalhar com os meus alunos em sala de aula, quer quando lecciono Inglês, quer quando tenho a sorte de ter um horário de Português.

O filme aborda temas relacionados com a poesia, ou melhor, o amor pela arte poética por parte de Mr. Keating e a sua crítica às interpretações “quadradas”, maniqueístas e inflexíveis dos críticos literários da época; ilustra o ensino nos anos 50 e a rigidez e rectidão das regras impostas, desde tenra idade, aos alunos e a consequente rebeldia em rompê-las, inerente aos adolescentes; demonstra-nos a relação pais-filhos, onde o autoritarismo cego de um pai infanticida, atrofia as escolhas do seu talentoso filho, Neil Perry; como não podia faltar, surge também o amor puro, sincero e romântico presente na personagem de Knox Overstreet pela encantadora Christine; apresenta-nos ainda a timidez de Todd Anderson que é combatida, corajosamente, na célebre última cena do filme (Sim… aquela que nos arranca sempre uma lagrimazita ao canto do olho):

“Oh, Captain, my Captain”.

Destaco ainda uma das minhas cenas favoritas: Todd está sentado junto às ameias do palacete onde o colégio está inserido com um conjunto de secretária junto dele. Neil chega para saber o que se passa e fica a saber que o amigo faz anos nesse dia e está triste porque os pais lhe ofereceram a mesma prenda que haviam oferecido no aniversário passado. Para animar o companheiro de quarto, Neil convence-o a lançar o presente pelo ar e diz:”Não te preocupes. Para o ano recebes outro.”. Esta cena é toda ela ilustrativa do desinteresse dos pais por este filho, que, segundo eles, deverá seguir as pegadas do irmão mais velho, que era um “génio”.

Enfim, é dos filmes mais completos que já vi. Os valores transmitidos, o sentido de humor, a mensagem do Carpe Diem, a camaradagem e a traição de Cameron, a poesia sempre presente como forma natural de descrever o mundo que nos rodeia e o nosso íntimo são os ingredientes que fazem parte desde soberbo filme dos anos 90.


Prof.ª Ana Costa Arruda

Fonte:
http://bibliblogue.wordpress.com/2009/02/11/o-filme-da-minha-vida-clube-dos-poetas-mortos-por-ana-arruda/

"Quem te deu licença de morrer?" Crónica de António Lobo Antunes








Quem te deu licença de morrer?


"Agora já não lhe batem, nem dá banho ao polegar em nenhuma sopa. Porque é que a sua morte me entristece? Por ele, claro, mas por mim também. Por ele, dado que o Pontinha apreciava viver, mesmo no meio da aflição dos seus dias. Por mim, pelo facto de o meu mundo se ir despovoando. Não me agrada que me roubem o passado, me depenem de recordações, memórias, torradas, panos sujos"

8:22 Quinta feira, 10 de Fev de 2011

Soube ontem que o Pontinha morreu em agosto. Era pobre demais para que alguém se interessasse por ele, falasse dele. Viva na franja da miséria, com uma reforma ridícula, que tentava melhorar engraxando sapatos, aos domingos, no Campo Grande. Nunca o vi maldisposto, nunca o ouvi queixar-se. Aceitava. Foi ordenança da messe de oficiais em Marimba, cortava-me a comida em bocadinhos de dois por três centímetros, que eu conferia com uma fita métrica, no pretexto do tamanho da minha goela. Um milímetro a mais e soltava um berro

- Pontinha

mostrando-lhe, de dedo apontado, que não cabia. O Pontinha levava aquilo para dentro e procedia a novas medições. No encontro anual da Companhia fazia questão de me preparar o almoço, às vezes mandava-o sentar-se ao meu lado e o Pontinha, impante, designando os outros soldados

- Mijam-se todos de inveja de eu estar aqui à sua beira

a triunfar, radiante de júbilo, torto, feio, feliz. Não usava arma, trazia um pano sujo pendurado do ombro. A higiene não era o forte dele mas, na desgraça em que vivíamos, quem se ralava com isso? Várias vezes lhe ordenei

- Tira o polegar da minha sopa

O Pontinha tirava, chupava-o, perguntava-me

- Já está limpo, não está?

e, sem dar por isso, metia-o lá dentro outra vez. No meio daquela água chilra distinguia-lhe o cuspo, e engolia o polegar, água morna e alguns feijões. À tarde, se estava no aquartelamento, pedia-lhe chá e torradas, mais duras que os meus dentes, com uma leve sombra de manteiga em cima. Quanto ao chá sabia, em partes iguais, a borras de café e a Pontinha. O Pontinha era atirador, mas como a sua coragem se mostrava um bocado vacilante passou para a messe, um casinhoto horrível, diante do pau da bandeira e das trovoadas. O segundo comandante, de quem eu gostava

- Porque é que vocês têm aqui esta coisa?

fitando o Pontinha num desgosto à beira das lágrimas, e no entanto mantivemo-lo firme, com a sua sujidade e os seus dentes mal plantados, porque o Pontinha era tão mau que se tornava esplêndido e dava um vago colorido às nossas tristes existências. Acho que acabámos por ter uma certa ternura por ele

(que palavra tão esquisita na guerra, ternura)

e nos comovia o seu desamparo. Se calhar ele também tinha uma certa ternura por nós e comovia-o o nosso desamparo. Epidemias de cólera, solidão, saudades. Só o Pontinha se me afigurava contente no meio dos seus tachos em desordem: servir os senhores oficiais, que privilégio. E este agosto morreu. Nos encontros da companhia admitia que a mulher lhe dava porrada:

- E tu?

o Pontinha, convicto

- Lá lhe vou batendo também

mas menos que ela, mais desembaraçada no bofetão. Não parecia sofrer com essas lutas, orgulhava-se sinceramente da ferocidade da esposa:

- Não é para graças

exultava ele

- Não é para graças

orgulhoso da sua padeira de Aljubarrota, que lhe ficava com o dinheiro porque o Pontinha sofria de inclinações para o tinto. Na última ocasião não veio, alguém comentou vagamente

- Parece que não está muito bem

e não sei quê nos ossos enfiou-o numa caixa. Agora já não lhe batem, nem dá banho ao polegar em nenhuma sopa. Porque é que a sua morte me entristece? Por ele, claro, mas por mim também. Por ele, dado que o Pontinha apreciava viver, mesmo no meio da aflição dos seus dias. Por mim, pelo facto de o meu mundo se ir despovoando. Não me agrada que me roubem o passado, me depenem de recordações, memórias, torradas, panos sujos. Apetece-me berrar

- Pontinha

e o Pontinha vir a correr, relativamente a correr visto que a pressa não fazia parte das suas características, suspender-se no limiar com o pano sujo, interrogar

- É o lanchinho senhor doutor?

(não me tratava pelo posto, tratava-me por

- Senhor doutor)

e proceder, num imenso chinfrim de metais, à confeção das suas fatias de granito. Apetece-me inquirir

- Enfiaste o dedo na caneca do chá?

escutar de volta

- Quer que prove a ver se tem bastante açúcar?

Uivar-lhe

- Não

com o Pontinha já a sorver um golo, chamar-lhe

- Seu cabrão

e no fundo achar graça a tanto desvelo maternal, tanto cuidado. Há anos anunciou-me

- Você precisa é que vá para sua casa tomar conta de si

e quase estive de acordo com ele. Insistiu

- Não quer que vá para sua casa tomar conta de si?

por uma unha negra não disse

- Quero

e de novo as mangueiras de Marimba, tão lindas, entre a Administração e o posto médico, e de novo a comida cortada em dois por três centímetros, e de novo as imensas noites de Angola na estreiteza de Lisboa. E de novo nós com vinte anos e de novo estrelas desconhecidas, sem fim, a garantirem-nos que éramos eternos, que seríamos eternos eternamente. Alguns cadáveres à nossa volta, claro, mas a gente eternos. Foste-te com uma coisa nos ossos, imagine-se. Com que direito? Se caíres na asneira de me aparecer à frente torno a chamar-te

- Seu cabrão

já que, vendo bem as coisas, não era má ideia estares em minha casa a tomar conta de mim.

- Se eu tomasse conta de você o senhor doutor andava aí como uma rosa

e palavra que me dava jeito andar aí como uma rosa, as pessoas

- Anda aí como uma rosa

e eu

- É que tenho o Pontinha comigo

para os que não possuem a sorte de ter o Pontinha com eles, nem de exigirem

- Dois por três centímetros, Pontinha, nem mais um milímetro

e o Pontinha, de fita métrica, a conferir o rosbife.


Crónica publicada na revista Visão

"Porque Hoje é Domingo" Crónica de Isabel Stilwell





Crónica "porque hoje é domingo"

Os homens do século XXI são uns coitados. É preciso dizê-lo com coragem e frontalidade. Não há um único de entre eles que não se queixe, variando apenas os decibéis de protesto – mais alto ou mais baixo, conforme o grau de tolerância da mulher que têm em casa. Alguns revoltam-se. E com razão. Afinal, quando eram pequeninos, andavam em pezinhos de lã para não perturbar a sesta do paizinho, que a mãe dizia ser merecida por um dia de trabalho “para nos pôr o pão na boca”, e agora ninguém lhes agradece nada. Vergaram-se à autoridade paterna, porque com o chefe de família não se brincava, e hoje, mal franqueiam a porta do lar doce lar, depois de um dia de escravidão, elas desarvoram a caminho da ginástica (onde estão os chinelos e o jantar na mesa?) e os filhos saltam-lhes em cima, exigindo, a tiro de pistola, uma nova playstation, um aumento de semanada ou as chaves do carro. E, enquanto isto, roem-se de inveja porque enquanto tiram a loiça da máquina o amigo solteiro tortura-os com descrições de um mundo idílico, onde tem tudo sem dar nada em troca. É duro, e compreensivelmente existem homens que depois de uma injecção extra de testosterona dão o grito do Ipiranga. Foi o que fez o senhor Billy Bob Thornton, sujeito de quem nunca tinha ouvido falar, mas que alega em sua defesa ser actor e ex-marido de Angelina Jolie. Passados uns anos, e vendo a esposa nos braços de Brad Pitt, decidiu revelar ao mundo os fundamentos da sua separação. E disse: “Deixei a Angelina porque ela não me permitia ver televisão!” (sic).
Ao ouvirem a sua singela declaração, os machos latinos deitaram as mãos à cabeça. É que a vida pode estar difícil, mas ainda nenhuma indígena se lembrou de os proibir de ver a bola. E se a moda pega? Como diria Vasco Pulido Valente, o mundo está realmente perigoso.


Isabel Stilwell

Crónica publicada na revista Noticias Magazine



segunda-feira, março 07, 2011

"Diz-me onde moras» Crónica de Miguel Esteves Cardoso

Diz-me onde moras...
Um dos grandes problemas da nossa sociedade é o trauma da morada. Por exemplo. Há uns anos, um grande amigo meu, que morava em Sete Rios, comprou um andar em Carnaxide. Fica pertíssimo de Lisboa, é agradável, tem árvores e cafés. Só tinha um problema. Era em Carnaxide. Nunca mais ninguém o viu.

Para quem vive em Lisboa, tinha emigrado para a Mauritânia! Acontece o mesmo com todos os sítios acabados em -ide, como Carnide e Moscavide. Rimam com Tide e com Pide e as pessoas não lhes ligam pevide. Um palácio com sessenta quartos em Carnide é sempre mais traumático do que umas águas-furtadas em Cascais. É a injustiça do endereço. Está-se numa festa e as pessoas perguntam, por boa educação ou por curiosidade, onde é que vivemos. O tamanho e a arquitectura da casa não interessam. Mas morre imediatamente quem disser que mora em Massamá, Brandoa, Cumeada, Agualva-Cacém, Abuxarda, Alformelos, Murtosa, Angeja… ou em qualquer outro sítio que soe à toponímia de Angola. Para não falar na Cova da Piedade, na Coina, no Fogueteiro e na Cruz de Pau. (...) Ao ler os nomes de alguns sítios – Penedo, Magoito, Porrais, Venda das Raparigas, compreende-se porque é que Portugal não está preparado para entrar na CEE.

De facto, com sítios chamados Finca Joelhos (concelho de Avis) e Deixa o Resto (Santiago do Cacém), como é que a Europa nos vai querer integrar?
Compreende-se logo que o trauma de viver na Damaia ou na Reboleira não é nada comparado com certos nomes portugueses. Imagine-se o impacte de dizer "Eu sou da Margalha" (Gavião) no meio de um jantar. Veja-se a cena num chá dançante em que um rapaz pergunta delicadamente "E a menina de onde é?", e a menina diz: "Eu sou da Fonte da Rata" (Espinho).
E suponhamos que, para aliviar, o senhor prossiga, perguntando "E onde mora, presentemente?", só para ouvir dizer que a senhora habita na Herdade da Chouriça (Estremoz).

É terrível. O que não será o choque psicológico da criança que acorda, logo depois do parto, para verificar que acaba de nascer na localidade de Vergão Fundeiro? Vergão Fundeiro, que fica no concelho de Proença-a-Nova, parece o nome de uma versão transmontana do Garganta Funda. Aliás, que se pode dizer de um país que conta não com uma Vergadela (em Braga), mas com duas, contando com a Vergadela de Santo Tirso? Será ou não exagerado relatar a existência, no concelho de Arouca, de uma Vergadelas? É evidente, na nossa cultura, que existe o trauma da "terra". Ninguém é do Porto ou de Lisboa.

Toda a gente é de outra terra qualquer. Geralmente, como veremos, a nossa terra tem um nome profundamente embaraçante, daqueles que fazem apetecer mentir. Qualquer bilhete de identidade fica comprometido pela indicação de naturalidade que reze Fonte do Bebe e Vai-te (Oliveira do bairro). É absolutamente impossível explicar este acidente da natureza a amigos estrangeiros ("I am from the Fountain of Drink and GoAway...").

Apresente-se no aeroporto com o cartão de desembarque a denunciá-lo como sendo originário de Filha Boa. Verá que não é bem atendido.(...) Não há limites. Há até um lugar chamado amigalhaço, no concelho de Ponte de Lima.
Urge proceder à renomeação de todos estes apeadeiros. Há que dar-lhes nomes
civilizados e europeus, ou então parecidos com os nomes dos restaurantes giraços, tipo Não Sei, A Mousse é Caseira, ou Vai Mais um Rissól.(...)
Também deve ser difícil arranjar outro país onde se possa fazer um percurso
que vá da Fome Aguda à Carne Assada (Sintra) passando pelo Corte Pão e Água
(Mértola), sem passar por Poriço (Vila Verde), e acabando a comprar rebuçados em Bombom do "Bogadouro"¹, (Amarante), depois de ter parado parafazer um chi-chi em Alçaperna (Lousã).



¹ - Bogadouro é o Mogadouro quando se está constipado!!!

(Miguel Esteves Cardoso)

Crónica publicada na revista Visão

"D. Deolinda" Crónica de Marta Caires




Dona Deolinda

O atelier ficava no primeiro andar, a sala de provas no quarto ao lado. Dona Deolinda, a costureira, recebia clientes e aprendizes com um sorriso. Foi assim que me recebeu, num Verão de tédio, quando me apresentei para aprender costura. Atrás da sua velha máquina Singer, percebeu depressa que nunca faria de mim uma profissional, mas não me enjeitou. Por boa educação, por simpatia.
A dona Deolinda era uma senhora. No trato, no modo de vestir, na forma de viver. E conhecia-me. A rapariga de 15 anos, sem préstimo, que fazia um esforço para coser bainhas e pregar botões. Todas as tardes, de segunda à sexta, subia o beco para aprender a arte do ofício. E lá passava as horas. Sentada, com as mãos transpiradas pelo nervoso, picando os dedos com a agulha.
Não tinha futuro. Via-se. No atelier ninguém desarmava. "Até não está mal", dizia a costureira, diziam as minhas duas companheiras de aprendizagem. Com piedade, pois gostavam de mim. E eu delas. Admirava a forma como cosiam, como colavam a entretela nos casacos, pregavam botões e fechos.
O ambiente, com retalhos de tecido no soalho e o armário cheio de roupa em construção, era animado pelas conversas. Da dona Deolinda, das clientes, das pessoas que entravam e saíam daquele quarto no primeiro andar de uma casa de sobrado. Falava-se. Da vida, das raparigas que entravam para casar, dos noivados desfeitos, as gravidezes inesperadas, de doenças e desgostos.
Com regras, que nenhum negócio se mantém com indiscrições. Entre alinhavos e acertos, a dona Deolinda ouvia confidências, lamentos, desabafos. E guardava segredo. Tinha nome, prestígio e um sorriso que nunca desarmava. Nem mesmo comigo, a quem a Natureza não favorecera com talento para a costura.
Mas eu gostava das tardes. De andar por ali, de varrer o chão às sextas-feiras, de limpar o pó ao parapeito da janela, onde se arrumavam a almofadinha dos alfinetes e os carrinhos de linhas. E não perdia o momento de engomar e embrulhar em papel de seda os vestidos acabados de fazer. Sem vincos, imaculados, com a conta presa por um alfinete.
O orçamento curto, em letra inclinada da terceira classe. Com total e parcelas, mão-de-obra e acabamentos. As aprendizes, como eu, tinham desconto e, por isso, nesse Verão acertei saias e blusas. Inspiradas nas Burdas, as revistas de modas alemãs que abundavam no atelier.
Não sei se era mais caro ou mais barato do que as lojas de pronto-a-vestir. Talvez fosse mania minha. Delírio de quem acalentava o sonho improvável de fazer a própria roupa. Ou quem sabe se tinha já a percepção de um mundo que morria com a minha infância.
A dona Deolinda era a última das costureiras da vizinhança, a última a ter atelier e aprendizes, vestidos embrulhados em papel de seda e contas presas por alfinete. O derradeiro lugar de um certo modo de vida. Das roupas feitas por medida para casamentos, baptizados e as festas da paróquia. Com provas e tecidos que duravam anos.
Um mundo e um tempo que tive o privilégio de habitar nesse Verão de tédio dos meus 15 anos.

Crónica publicada no DN-Madeira





"A crise está em crise" Crónica de R. Araújo Pereira





Ou estou fortemente enganado (o que sucede, aliás, com uma frequência notável), ou a história de Portugal é decalcada da história de Pedro e o Lobo, com uma pequena alteração: em vez de Pedro e o Lobo, é Pedro e a Crise. De acordo com os especialistas – e para surpresa de todos os leigos, completamente inconscientes de que tal cenário fosse possível – Portugal está mergulhado numa profunda crise. Ao que parece, 2009 vai ser mesmo complicado.

O problema é que 2008 já foi bastante difícil. E, no final de 2006, o empresário Pedro Ferraz da Costa avisava no Diário de Notícias que 2007 não iria ser fácil. O que, evidentemente, se verificou, e nem era assim tão difícil de prever tendo em conta que, em 2006, analistas já detectavam que o País estava em crise. Em Setembro de 2005, Marques Mendes, então presidente do PSD, desafiou o primeiro-ministro para ir ao Parlamento debater a crise económica.

Nada disto era surpreendente na medida em que, de acordo com o Relatório de Estabilidade Financeira do Banco de Portugal, entre 2004 e 2005, o nível de endividamento das famílias portuguesas aumentou de 78% para 84,2% do PIB. O grande problema de 2004 era um prolongamento da grave crise de 2003, ano em que a economia portuguesa regrediu 0,8% e a ministra das Finanças não teve outro remédio senão voltar a pedir contenção. Pior que 2003, só talvez 2002, que nos deixou, como herança, o maior défice orçamental da Europa, provavelmente em consequência da crise de 2001, na sequência dos ataques terroristas aos Estados Unidos. No entanto, segundo o professor Abel M. Mateus, a economia portuguesa já se encontrava em crise antes do 11 de Setembro.

A verdade é que, tirando aqueles seis meses da década de 90 em que chegaram uns milhões valentes vindos da União Europeia, eu não me lembro de Portugal não estar em crise. Por isso, acredito que a crise do ano que vem seja violenta. Mas creio que, se uma crise quiser mesmo impressionar os portugueses, vai ter de trabalhar a sério. Um crescimento zero, para nós, é amendoins. Pequenas recessões comem os portugueses ao pequeno-almoço. 2009 só assusta esses maricas da Europa que têm andado a crescer acima dos 7 por cento. Quem nunca foi além dos 2%, não está preocupado.

É tempo de reconhecer o mérito e agradecer a governos atrás de governos que fizeram tudo o que era possível para não habituar mal os portugueses. A todos os executivos que mantiveram Portugal em crise desde 1143 até hoje, muito obrigado. Agora, somos o povo da Europa que está mais bem preparado para fazer face às dificuldades.

Crónica publicada na revista Visão

Ricardo Araújo Pereira Apresentação humorística da compilação das crónicas publicadas na revista "Visão": "Boca do Inferno"

Horácio Bento de Gouveia








A antologia Crónicas do Norte reúne alguns textos de Horácio Bento de Gouveia cuja "temática que lhe serve de guia e estrada é o Norte, mas o cerne da sua acção é a alma dos homens e das casas. Se o Norte é a lanterna que alumia os perdidos ou a razão segura de quem conhece o destino do caminho que pisa, nas crónicas de Horácio Bento de Gouveia habita a alma que dá sentido a toda a sabedoria, porque de inimitável sabedoria se compõe este, valoroso tratado sobre como se deve amar o rincão que nos serviu de berço."


Contém uma selecção de artigos da imprensa funchalense, a saber, do Diário de Notícias do Funchal, do Jornal da Madeira e do extinto semanário Voz da Madeira, feita por José António Gonçalves.

quarta-feira, março 02, 2011

Miguel Esteves Cardoso Elogio Ao Amor


RICARDO FRANÇA JARDIM




Nasceu no Funchal, em 1946. Reside em Lisboa, onde trabalha como médico psiquiatra, desde 1979, no Hospital Júlio de Matos. Nestas duas cidades, frequentou o pré-escolar, a primária e o liceu, em estabelecimentos privados e públicos. Estudou Medicina na Universidade de Coimbra até 1969, tendo participado no movimento estudantil, mas veio a concluir a licenciatura em Lisboa.
Actualmente, é Chefe de Serviço de Psiquiatria e Director do Serviço de Reabilitação do Hospital Júlio de Matos. Foi, entretanto, Assessor da Direcção clínica e co-responsável pelo Internato complementar de psiquiatria. Pertenceu ao primeiro colégio de psiquiatria eleito, mas demitiu-se na sequência de uma polémica sobre a ética das relações entre médicos e indústria farmacêutica. Exerceu a vice-presidência da Sociedade Portuguesa de Psicodrama.
Teve uma curta experiência docente, entre 1984 e 1990, no Curso de Terapia Ocupacional da Escola de Medicina Física de Alcoitão e na Escola de Enfermagem das Franciscanas Missionárias de Maria.
No campo da escrita, foi redactor do Comércio do Funchal (1968-74), colaborador do Público (1990-2000) e autor de três livros ? Inventário dos Mundos (1995), Arsénio e Rendas Velhas (1996), Tristes ilhas e outras conversas? (2002).




Entrevista

A sua experiência de escrita está ligada à imprensa. Os três livros publicados reúnem crónicas saídas na revista do Público.


A minha aventura jornalística começa antes, no final da década de sessenta, no Comércio do Funchal, com muitos colaboradores daquele semanário, sobretudo com o Vicente Jorge Silva, com quem mantenho uma profunda amizade.


Aí com textos mais de intervenção política e de análise social?


Nessa altura escrevia sobre temas de economia, saúde e história regional. Uma secção que me divertia imenso, era o "Lusitaníssimo", de fait divers inspirada num trabalho parecido de uma revista espanhola de então, a Triunfo. O Comércio do Funchal chegou a atingir uma tiragem de 14-15 mil exemplares e só mil ficavam na Madeira. E a maioria eram assinaturas. Era um verdadeiro produto de exportação: tinha mais assinantes em Angola ou Moçambique do que na Madeira.


Como vê a imprensa dos nossos dias?


Nos anos da minha juventude tínhamos uma grande unidade contra o regime. Hoje vivemos num registo diferente, de liberdade, embora possam existir outras amarguras. Há dois anos, ao abrir a porta do meu gabinete, deparei-me com um major, antigo censor do Comércio do Funchal, com quem compartilhávamos uma certa cumplicidade num jogo do gato e do rato. O homem fez-me uma festa e, depois, diz-me esta frase extraordinária: «Então lembra-se dos momentos em que você e o Vicente me chateavam porque lhes cortava uns textos? Veja lá se agora eram capazes de publicar um jornal daqueles!» De facto.


É mais difícil hoje a edição independente na Madeira?


Sem dúvida. Nessa altura houve uma série de factores absolutamente casuais: a censura não estava organizada para impedir um fenómeno periférico, como o Comércio do Funchal. Lembro-me de uma altura em que veio uma ordem para que todas as edições fossem censuradas em Lisboa, num tempo em que nem telexes existiam, era tudo por correio, publicámos o jornal com quatro páginas, «por razões estranhas à nossa vontade» o que provocou um incómodo nos censores, que não queriam dar aquela imagem?
Mas hoje em dia temos órgãos de comunicação, de um modo geral, melhores do que naquela altura.


Mas a Madeira continua a se um caso muito peculiar?


É um microcosmos. E num espaço tão pequeno também estabelecemos uma relação muito especial nas amizades e nos ódio. Há duas décadas a Madeira dependia essencialmente da monocultura da banana, do vinho e de uma coisa que pouco se fala, a "exportação" de emigrantes. Vivíamos dos "invisíveis correntes", ou seja, das remessas dos emigrantes. Hoje a realidade é diferente. Desapareceu a emigração. O turismo tem uma dimensão paquidermica, funciona como uma nova monocultura. E há a perversão do poder, que me incomoda. As pessoas perderam o sentido da crítica, há uma banalização do mal, no sentido de Hanah Arendt. O totalitarismo moderno tem a ver com uma certa apatia, com a incapacidade de estabelecermos crítica. Uma ilha é um excelente balão de ensaio para o novo tipo de totalitarismo pós-moderno, porquanto funciona como um "pool" geneticamente fechado. Vivem na Madeira 250 mil pessoas, 80% do investimento depende do governo regional, um poder público que à sua conta tem qualquer coisa como 25 mil funcionários. O governo é o grande investidor e empregador da região. Enfim, há endividamentos constantes, vive-se numa subsídio-dependência sem nada produzir. E a lei é a ordem do patrão, do führer lá do sítio, o presidente populista e vitalício Dr. Alberto João Jardim.


Homem sempre presente numa conversa de madeirenses?


É uma obsessão nossa. De facto, se se encontram dois madeirenses, daí a pouco estamos a falar dos nossos fantasmas.


Num dos textos de Tristes Ilhas, há alguém que lhe pergunta «E sobre medicina, escreve?» e a resposta é pronta «Ah, isso nunca. Basta o dia-a-dia.» Mas há sempre uma excepção?


Escrevi um texto que originou uma polémica terrível, sobre a ética da relação entre os médicos e a indústria farmacêutica. Levei muita pancada, mas continuo a achar que tinha razão. Levantei uma questão que está hoje no nosso quotidiano e se prende com a prescrição de genéricos. Sabia que estava a suscitar um problema incómodo mas não calculei a sua dimensão.


A imprensa amplifica o "ruído".


Não tive ideia das resistências que ia levantar. Lembro-me de, quando saiu o artigo, em Junho de 1994, ter ido almoçar com o José Cardoso Pires e de ele me ter dito «você meteu-se com o Diabo e está tramado.» Foi uma premonição.
Outra vez publiquei uma crónica chamada "Pastel de nata?"?


Em que acusava o ministro Marçal Grilo de ter inventado «uma nova licenciatura: "Educador(a) Infantil". Com cadeiras práticas em técnicas de mudar de fraldas, suponho.»


Levantei uma polémica desgraçada por causa das educadoras de infância. Ficaram ofendidíssimas.
Também aconteceu algo de semelhante quando escrevi um fait divers sobre um curso de aeronáutica da Universidade da Beira Interior que tinha uma série de professores, vindos da ex-União Soviética, que davam aulas em mau inglês a alunos que mal sabiam Português.


Escreveu muitas crónicas para o jornal (130 as editadas em livro), num trabalho regular e disciplinado.


Nos primeiros anos do Público, escrevi todas as semanas, depois, não aguentei aquele ritmo, procurando manter uma certa qualidade. Tenho a ideia que qualquer texto precisa de repousar uns dias e voltar a ser lido e retocado.
Na contracapa do seu terceiro livro, transcrevem-se extractos de algumas cartas, enviadas por leitores, muito favoráveis às suas crónicas.
Senti esse carinho particularmente no momento em que abandonei o jornal. Durante esses anos recebi imensas cartas. Na altura, conforme me diziam, o António Lobo Antunes recebia algumas, e o José Cardoso Pires, disse-me ele próprio, nunca recebeu nenhuma carta de leitores do jornal. E o meu amigo Vicente [Jorge Silva], no momento em que abandonou a direcção, teve poucas cartas, ele, o "pai" do Público, com um trabalho notável e primordial naquele jornal? Provavelmente estabeleci maior empatia?
Em "Afectos", alguém lhe pergunta «Você é escritor?» e responde «Recuso esse estatuto. Com mágoa, confesso. Disse-lhe que fazia crónicas, short stories, coisas assim.»
Não sou propriamente um escritor, não vivo disto, não faço da escrita a ocupação principal. Gostava, mas nunca tive oportunidade.


Muitas são as referências à escola nos seus livros, do pré-escolar à universidade. Descreve algumas situações que, mesmo para nós, do campo da educação, são pouco conhecidas?


Estou como Celine, que dividia o mundo entre "actores" e "espectadores", exibicionistas e voyeurs. A minha posição é assumidamente voyeur.


E é essa distanciação que possibilita uma outra leitura.


Provavelmente, se estivesse na área da educação não falava na educação. Tenho certa dificuldade em escrever sobre a realidade mais próxima, como a medicina. É preciso criarmos uma certa distanciação para falar sobre as coisas. Como deve calcular, o psiquiatra é um voyeur por excelência; as pessoas contam-nos histórias fabulosas, tenho pena de não as poder elaborar, por questões éticas e de confidencialidade.


Quando descreve as várias escolas que frequentou, há nesses textos grande rigor etnográfico. Uma memória cheia de pormenores?


Não sei. Mas a evocação da memória é uma fabricação, uma recriação do que imaginamos e do que nos contam. Em relação à escola, era um sítio onde íamos todos os dias, mas por vezes há uma grande distorção em relação à realidade.


"A memória imaginada" foi o primeiro texto que encontrei que fala de um recreio ? no "Ninho dos Pequeninos", o tal «Tarrafal das Criancinhas» ? fundamentalmente ocupado por raparigas e não por rapazes.


Era uma escola religiosa só para raparigas, onde os rapazes eram admitidos a prazo, até aos 7 anos. Éramos meia dúzia de meninos da infantil. Havia uma espécie de linha de separação no recreio, e o lado onde ficavam os baloiços era-nos inacessível. As freiras eram muito segregacionistas, impunham uma separação de sexos.


Como foram os primeiros tempos de escola?


O primeiro dia é um mar de lágrimas. É o princípio da realidade em confronto com o do prazer?


É o corte com a família.


Exacto, estávamos no aconchego. É como no parto, estávamos ali no líquido amniótico e fomos expulsos para este mundo cruel?


Gostou de andar na escola primária da Dona Egídia?


Uma professora de uma certa severidade. Era uma escola particular de uma daquelas professoras que faziam escola numa parte da casa onde residiam, uma sala onde coexistiam meninos da 1ª à 4ª classes. Escola típica da época que não faria muita diferença das escolas públicas: tinha aquelas carteiras com tinteiros onde colocávamos a pena e atirávamos a tinta para o gajo da frente.


Era ao mesmo tempo um local de transgressão.


Havia alguma severidade nos deveres mas era um lugar simpático?


E a sua experiência no Colégio Lisbonense, onde um dia também resolveu tornar-se cábula?


Na minha altura havia o liceu, uma escola comercial e industrial e dois colégios particulares, o Lisbonense e o Colégio Nuno Álvares, mais conhecido pelo "Caroço". O Dr. Caroço, seu proprietário e director, era um homem de disciplina férrea e castigos corporais; o aluno cábula ia para o "Caroço". Se não fosse aí endireitado, era exportado para uns colégios do Continente, com muita fama. Se o jovem não era "consertado" no colégio de Tomar, então passava para o Lisbonense, uma espécie de última paragem antes do deserto.


Tem ideia de quantos colegas vieram consigo para Medicina?


Uns 5 ou 6. Quando acabei o 7º ano éramos poucos, 80 alunos, desses, 20 ou 30 vieram para a Universidade; para um ilhéu, tirar um curso superior era caro, subentendia algum suporte financeiro. Estive em Coimbra numa República, éramos 10, todos ilhéus, 8 estudantes de medicina e filhos de médicos. A amostra não é significativa mas define um padrão. Dá uma ideia da Universidade nessa altura.


Como era a vida académica de Coimbra?


Coimbra nos anos 60 era uma cidade muito arcaica. Em Coimbra, a sociedade estava estratificada, havia o mundo dos estudantes e o mundo fora da academia, os "futricas". E havia os rituais de iniciação, as praxes, que sempre considerei absurdas e que culminavam na "Queima das Fitas"?


Pertence a uma geração que «mandou as praxes às urtigas».


Coimbra era realmente um sítio especial. Havia em Coimbra um grande provincianismo impossível de acontecer em Lisboa ou no Porto. O movimento de 69 abalou a estrutura das praxes em Coimbra.
Na época, podia-se entender todo esse ritual académico face a um corpo discente muito restrito, desejoso de vincar o seu elitismo. E com a crescente massificação do superior?
Tenho alguma perplexidade quando vejo a praxe ressurgir nos locais mais periféricos. Não sei explicar o fenómeno, mas penso que o acesso à universidade continua a ser bastante restrito. Terá a ver com importância que se atribui, em algumas classes sociais, ao facto de haver um licenciado na família, deve ser importante em termos de posicionamento social. Em Lisboa nos anos 70, era impensável haver uma missa campal na Alameda da Universidade com o senhor Cardeal Patriarca a benzer as pastas e, no entanto, em termos ideológicos e políticos esse cenário seria mais plausível que hoje?


A formação dos médicos escapou à voracidade dos privados, mantendo-se um exclusivo do ensino público.


Por alguma razão as universidades privadas nunca investiram na formação médica. É um curso que exige mais do que papel e lápis. Em Medicina tem de haver um suporte hospitalar, que é caro, não dá lucro, é deficitário. O nosso "material didáctico", ao fim e ao cabo, são os doentes, e para isso tem de haver uma "patologia" razoavelmente variada. Nos anos 70, quando concluí o curso, formaram-se 700 médicos por ano, 350 em Lisboa, 350 em Coimbra e no Porto.


Entretanto abriram novas escolas de medicina.


Passados 20 anos, temos 5 faculdades de medicina com 300 formados/ano em todo o país. Penso que os problemas da medicina não passam pelo aumento do número das faculdades, mas pela qualidade do ensino. De acordo com os dados internacionais, deve existir uma faculdade de medicina para 2 milhões de habitantes. Tendo em conta que somos 10 milhões, 5 faculdades de medicina chegam e sobram?


Mas, neste momento, já há 7. Candidaturas não faltam. Pelos vistos, ter uma faculdade de medicina dá prestígio à cidade e aos autarcas.


Provavelmente. Antigamente eram os quartéis agora são as universidades.


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