quarta-feira, março 02, 2011


RICARDO FRANÇA JARDIM




Nasceu no Funchal, em 1946. Reside em Lisboa, onde trabalha como médico psiquiatra, desde 1979, no Hospital Júlio de Matos. Nestas duas cidades, frequentou o pré-escolar, a primária e o liceu, em estabelecimentos privados e públicos. Estudou Medicina na Universidade de Coimbra até 1969, tendo participado no movimento estudantil, mas veio a concluir a licenciatura em Lisboa.
Actualmente, é Chefe de Serviço de Psiquiatria e Director do Serviço de Reabilitação do Hospital Júlio de Matos. Foi, entretanto, Assessor da Direcção clínica e co-responsável pelo Internato complementar de psiquiatria. Pertenceu ao primeiro colégio de psiquiatria eleito, mas demitiu-se na sequência de uma polémica sobre a ética das relações entre médicos e indústria farmacêutica. Exerceu a vice-presidência da Sociedade Portuguesa de Psicodrama.
Teve uma curta experiência docente, entre 1984 e 1990, no Curso de Terapia Ocupacional da Escola de Medicina Física de Alcoitão e na Escola de Enfermagem das Franciscanas Missionárias de Maria.
No campo da escrita, foi redactor do Comércio do Funchal (1968-74), colaborador do Público (1990-2000) e autor de três livros ? Inventário dos Mundos (1995), Arsénio e Rendas Velhas (1996), Tristes ilhas e outras conversas? (2002).




Entrevista

A sua experiência de escrita está ligada à imprensa. Os três livros publicados reúnem crónicas saídas na revista do Público.


A minha aventura jornalística começa antes, no final da década de sessenta, no Comércio do Funchal, com muitos colaboradores daquele semanário, sobretudo com o Vicente Jorge Silva, com quem mantenho uma profunda amizade.


Aí com textos mais de intervenção política e de análise social?


Nessa altura escrevia sobre temas de economia, saúde e história regional. Uma secção que me divertia imenso, era o "Lusitaníssimo", de fait divers inspirada num trabalho parecido de uma revista espanhola de então, a Triunfo. O Comércio do Funchal chegou a atingir uma tiragem de 14-15 mil exemplares e só mil ficavam na Madeira. E a maioria eram assinaturas. Era um verdadeiro produto de exportação: tinha mais assinantes em Angola ou Moçambique do que na Madeira.


Como vê a imprensa dos nossos dias?


Nos anos da minha juventude tínhamos uma grande unidade contra o regime. Hoje vivemos num registo diferente, de liberdade, embora possam existir outras amarguras. Há dois anos, ao abrir a porta do meu gabinete, deparei-me com um major, antigo censor do Comércio do Funchal, com quem compartilhávamos uma certa cumplicidade num jogo do gato e do rato. O homem fez-me uma festa e, depois, diz-me esta frase extraordinária: «Então lembra-se dos momentos em que você e o Vicente me chateavam porque lhes cortava uns textos? Veja lá se agora eram capazes de publicar um jornal daqueles!» De facto.


É mais difícil hoje a edição independente na Madeira?


Sem dúvida. Nessa altura houve uma série de factores absolutamente casuais: a censura não estava organizada para impedir um fenómeno periférico, como o Comércio do Funchal. Lembro-me de uma altura em que veio uma ordem para que todas as edições fossem censuradas em Lisboa, num tempo em que nem telexes existiam, era tudo por correio, publicámos o jornal com quatro páginas, «por razões estranhas à nossa vontade» o que provocou um incómodo nos censores, que não queriam dar aquela imagem?
Mas hoje em dia temos órgãos de comunicação, de um modo geral, melhores do que naquela altura.


Mas a Madeira continua a se um caso muito peculiar?


É um microcosmos. E num espaço tão pequeno também estabelecemos uma relação muito especial nas amizades e nos ódio. Há duas décadas a Madeira dependia essencialmente da monocultura da banana, do vinho e de uma coisa que pouco se fala, a "exportação" de emigrantes. Vivíamos dos "invisíveis correntes", ou seja, das remessas dos emigrantes. Hoje a realidade é diferente. Desapareceu a emigração. O turismo tem uma dimensão paquidermica, funciona como uma nova monocultura. E há a perversão do poder, que me incomoda. As pessoas perderam o sentido da crítica, há uma banalização do mal, no sentido de Hanah Arendt. O totalitarismo moderno tem a ver com uma certa apatia, com a incapacidade de estabelecermos crítica. Uma ilha é um excelente balão de ensaio para o novo tipo de totalitarismo pós-moderno, porquanto funciona como um "pool" geneticamente fechado. Vivem na Madeira 250 mil pessoas, 80% do investimento depende do governo regional, um poder público que à sua conta tem qualquer coisa como 25 mil funcionários. O governo é o grande investidor e empregador da região. Enfim, há endividamentos constantes, vive-se numa subsídio-dependência sem nada produzir. E a lei é a ordem do patrão, do führer lá do sítio, o presidente populista e vitalício Dr. Alberto João Jardim.


Homem sempre presente numa conversa de madeirenses?


É uma obsessão nossa. De facto, se se encontram dois madeirenses, daí a pouco estamos a falar dos nossos fantasmas.


Num dos textos de Tristes Ilhas, há alguém que lhe pergunta «E sobre medicina, escreve?» e a resposta é pronta «Ah, isso nunca. Basta o dia-a-dia.» Mas há sempre uma excepção?


Escrevi um texto que originou uma polémica terrível, sobre a ética da relação entre os médicos e a indústria farmacêutica. Levei muita pancada, mas continuo a achar que tinha razão. Levantei uma questão que está hoje no nosso quotidiano e se prende com a prescrição de genéricos. Sabia que estava a suscitar um problema incómodo mas não calculei a sua dimensão.


A imprensa amplifica o "ruído".


Não tive ideia das resistências que ia levantar. Lembro-me de, quando saiu o artigo, em Junho de 1994, ter ido almoçar com o José Cardoso Pires e de ele me ter dito «você meteu-se com o Diabo e está tramado.» Foi uma premonição.
Outra vez publiquei uma crónica chamada "Pastel de nata?"?


Em que acusava o ministro Marçal Grilo de ter inventado «uma nova licenciatura: "Educador(a) Infantil". Com cadeiras práticas em técnicas de mudar de fraldas, suponho.»


Levantei uma polémica desgraçada por causa das educadoras de infância. Ficaram ofendidíssimas.
Também aconteceu algo de semelhante quando escrevi um fait divers sobre um curso de aeronáutica da Universidade da Beira Interior que tinha uma série de professores, vindos da ex-União Soviética, que davam aulas em mau inglês a alunos que mal sabiam Português.


Escreveu muitas crónicas para o jornal (130 as editadas em livro), num trabalho regular e disciplinado.


Nos primeiros anos do Público, escrevi todas as semanas, depois, não aguentei aquele ritmo, procurando manter uma certa qualidade. Tenho a ideia que qualquer texto precisa de repousar uns dias e voltar a ser lido e retocado.
Na contracapa do seu terceiro livro, transcrevem-se extractos de algumas cartas, enviadas por leitores, muito favoráveis às suas crónicas.
Senti esse carinho particularmente no momento em que abandonei o jornal. Durante esses anos recebi imensas cartas. Na altura, conforme me diziam, o António Lobo Antunes recebia algumas, e o José Cardoso Pires, disse-me ele próprio, nunca recebeu nenhuma carta de leitores do jornal. E o meu amigo Vicente [Jorge Silva], no momento em que abandonou a direcção, teve poucas cartas, ele, o "pai" do Público, com um trabalho notável e primordial naquele jornal? Provavelmente estabeleci maior empatia?
Em "Afectos", alguém lhe pergunta «Você é escritor?» e responde «Recuso esse estatuto. Com mágoa, confesso. Disse-lhe que fazia crónicas, short stories, coisas assim.»
Não sou propriamente um escritor, não vivo disto, não faço da escrita a ocupação principal. Gostava, mas nunca tive oportunidade.


Muitas são as referências à escola nos seus livros, do pré-escolar à universidade. Descreve algumas situações que, mesmo para nós, do campo da educação, são pouco conhecidas?


Estou como Celine, que dividia o mundo entre "actores" e "espectadores", exibicionistas e voyeurs. A minha posição é assumidamente voyeur.


E é essa distanciação que possibilita uma outra leitura.


Provavelmente, se estivesse na área da educação não falava na educação. Tenho certa dificuldade em escrever sobre a realidade mais próxima, como a medicina. É preciso criarmos uma certa distanciação para falar sobre as coisas. Como deve calcular, o psiquiatra é um voyeur por excelência; as pessoas contam-nos histórias fabulosas, tenho pena de não as poder elaborar, por questões éticas e de confidencialidade.


Quando descreve as várias escolas que frequentou, há nesses textos grande rigor etnográfico. Uma memória cheia de pormenores?


Não sei. Mas a evocação da memória é uma fabricação, uma recriação do que imaginamos e do que nos contam. Em relação à escola, era um sítio onde íamos todos os dias, mas por vezes há uma grande distorção em relação à realidade.


"A memória imaginada" foi o primeiro texto que encontrei que fala de um recreio ? no "Ninho dos Pequeninos", o tal «Tarrafal das Criancinhas» ? fundamentalmente ocupado por raparigas e não por rapazes.


Era uma escola religiosa só para raparigas, onde os rapazes eram admitidos a prazo, até aos 7 anos. Éramos meia dúzia de meninos da infantil. Havia uma espécie de linha de separação no recreio, e o lado onde ficavam os baloiços era-nos inacessível. As freiras eram muito segregacionistas, impunham uma separação de sexos.


Como foram os primeiros tempos de escola?


O primeiro dia é um mar de lágrimas. É o princípio da realidade em confronto com o do prazer?


É o corte com a família.


Exacto, estávamos no aconchego. É como no parto, estávamos ali no líquido amniótico e fomos expulsos para este mundo cruel?


Gostou de andar na escola primária da Dona Egídia?


Uma professora de uma certa severidade. Era uma escola particular de uma daquelas professoras que faziam escola numa parte da casa onde residiam, uma sala onde coexistiam meninos da 1ª à 4ª classes. Escola típica da época que não faria muita diferença das escolas públicas: tinha aquelas carteiras com tinteiros onde colocávamos a pena e atirávamos a tinta para o gajo da frente.


Era ao mesmo tempo um local de transgressão.


Havia alguma severidade nos deveres mas era um lugar simpático?


E a sua experiência no Colégio Lisbonense, onde um dia também resolveu tornar-se cábula?


Na minha altura havia o liceu, uma escola comercial e industrial e dois colégios particulares, o Lisbonense e o Colégio Nuno Álvares, mais conhecido pelo "Caroço". O Dr. Caroço, seu proprietário e director, era um homem de disciplina férrea e castigos corporais; o aluno cábula ia para o "Caroço". Se não fosse aí endireitado, era exportado para uns colégios do Continente, com muita fama. Se o jovem não era "consertado" no colégio de Tomar, então passava para o Lisbonense, uma espécie de última paragem antes do deserto.


Tem ideia de quantos colegas vieram consigo para Medicina?


Uns 5 ou 6. Quando acabei o 7º ano éramos poucos, 80 alunos, desses, 20 ou 30 vieram para a Universidade; para um ilhéu, tirar um curso superior era caro, subentendia algum suporte financeiro. Estive em Coimbra numa República, éramos 10, todos ilhéus, 8 estudantes de medicina e filhos de médicos. A amostra não é significativa mas define um padrão. Dá uma ideia da Universidade nessa altura.


Como era a vida académica de Coimbra?


Coimbra nos anos 60 era uma cidade muito arcaica. Em Coimbra, a sociedade estava estratificada, havia o mundo dos estudantes e o mundo fora da academia, os "futricas". E havia os rituais de iniciação, as praxes, que sempre considerei absurdas e que culminavam na "Queima das Fitas"?


Pertence a uma geração que «mandou as praxes às urtigas».


Coimbra era realmente um sítio especial. Havia em Coimbra um grande provincianismo impossível de acontecer em Lisboa ou no Porto. O movimento de 69 abalou a estrutura das praxes em Coimbra.
Na época, podia-se entender todo esse ritual académico face a um corpo discente muito restrito, desejoso de vincar o seu elitismo. E com a crescente massificação do superior?
Tenho alguma perplexidade quando vejo a praxe ressurgir nos locais mais periféricos. Não sei explicar o fenómeno, mas penso que o acesso à universidade continua a ser bastante restrito. Terá a ver com importância que se atribui, em algumas classes sociais, ao facto de haver um licenciado na família, deve ser importante em termos de posicionamento social. Em Lisboa nos anos 70, era impensável haver uma missa campal na Alameda da Universidade com o senhor Cardeal Patriarca a benzer as pastas e, no entanto, em termos ideológicos e políticos esse cenário seria mais plausível que hoje?


A formação dos médicos escapou à voracidade dos privados, mantendo-se um exclusivo do ensino público.


Por alguma razão as universidades privadas nunca investiram na formação médica. É um curso que exige mais do que papel e lápis. Em Medicina tem de haver um suporte hospitalar, que é caro, não dá lucro, é deficitário. O nosso "material didáctico", ao fim e ao cabo, são os doentes, e para isso tem de haver uma "patologia" razoavelmente variada. Nos anos 70, quando concluí o curso, formaram-se 700 médicos por ano, 350 em Lisboa, 350 em Coimbra e no Porto.


Entretanto abriram novas escolas de medicina.


Passados 20 anos, temos 5 faculdades de medicina com 300 formados/ano em todo o país. Penso que os problemas da medicina não passam pelo aumento do número das faculdades, mas pela qualidade do ensino. De acordo com os dados internacionais, deve existir uma faculdade de medicina para 2 milhões de habitantes. Tendo em conta que somos 10 milhões, 5 faculdades de medicina chegam e sobram?


Mas, neste momento, já há 7. Candidaturas não faltam. Pelos vistos, ter uma faculdade de medicina dá prestígio à cidade e aos autarcas.


Provavelmente. Antigamente eram os quartéis agora são as universidades.


http://www.apagina.pt/?aba=7&cat=138&doc=10386&mid=2



1 comentário:

  1. Ricardo França Jardim é um dos cronistas madeirenses que gostava que lessem...Se puderem, leiam algumas das suas crónicas... Boas leituras e boas escolhas...
    Vanda Sousa

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